quarta-feira, 29 de abril de 2009

Quase

Ela olhou e desviou. Ele olhou e fingiu trocar a estação do rádio. A sinaleira abriu e eles não se casaram.

domingo, 12 de abril de 2009

O lenço

São quinze para as seis da manhã e vou para a academia a pé - os quatrocentos e cinquenta reais não incluem passagem. Fico lá, mudo, das sete às três da tarde, sem intervalo. Aperto o passo porque se o lugar não estiver brilhando até os primeiros alunos chegarem, é demissão na certa. Está clareando o dia e a cidade começa os seus primeiros movimentos. Minha distração é interrompida por um estouro.
Uma senhora está no chão e seus embrulhos espalhados pela calçada. Corro até ela, enquanto tateio o bolso da calça. Ela levanta o rosto, de onde sangue lhe escorre de um corte aberto na sobrancelha. Encontro o lenço. Mas o semblante da mulher me assusta. Não pelo sangue, mas pela expressão de dor acostumada. A queda lhe parece natural. Seus olhos de auto-piedade contida não pedem ajuda, ou consideração. Não há um mísero suspiro que alivie a raiva do acidente. Seus gritos são mudos.
Começo a tirar o lenço do bolso. Lenço que não limpará a sujeira que ela sente por dentro, nem a deixará mais digna, ou menos infeliz. Mas quem sabe limpe a expressão que me tortura, a vontade que tenho de sair correndo. Por que este corpo inerte me aponta assim? Queria que o lenço amenizasse ao menos as cicatrizes internas. Enxugasse o sofrimento. Tornasse a vida menos oca. Ela sentindo que me importo, ainda que não me importe realmente.
Seria bom se, como uma dama antiga, essa mulher tivesse jogado o lenço ao vento e eu por cortesia o devolvesse. Mas ela não pede cortesia. E o que jogou ao chão foi o corpo inteiro. Como matéria cansada de existir. Deixou-se tropeçar, levando joelhos e ombros a encontrarem o cimento cru, até que sua cabeça golpeasse a pedra. Seu braço tem agora carimbada a textura da laje. O sangue adentra as rugas que lhe acrescentam anos.
Enquanto tiro o lenço do bolso, me pergunto quem é essa mulher. Por que se deixa cair? Por que não levanta e não pragueja a pedra que a derrubou? Por que não age? Que ao menos chorasse, criatura sem útero!
Termino de tirar o lenço do bolso. A mulher levanta-se sozinha, com dificuldade apressada. Enquanto ela junta os pacotes, a encaro. A blusa rasgada na altura do peito, os joelhos em carne viva, o rosto de bicho. Meio masculino, talvez. Causa-me raiva, nojo, repulsa. Pergunto se ela está bem e sigo. No caminho, não posso evitar o uso do lenço. Esfrego-o nos meus olhos, na testa, nas mãos, nos braços, nos joelhos. Guardo-o e consigo chegar ainda pontualmente ao trabalho.