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terça-feira, 21 de julho de 2009

Destino

Diante do silêncio inquieto dos visitantes, ele filtra as primeiras impurezas. Transfere o que sobra para a segunda bateia, sacudindo-a em movimentos circulares. O restante, passa para a última bateia, sacode e verifica por alguns segundos. Nada. Joga o resto ao monte. Agachado entre as margens pardas do Rio Guinda, Demétrio repete o roçar das pedras nos fios metálicos das peneiras, esperando que a sorte venha para outro.

As terras são de poucos na região do Alto Jequitinhonha. Aos que não são herdeiros, resta empregar-se nas mais produtivas. Menino jeca, Demétrio chegou ao Garimpo Diamantina sem diferenciar vidro de diamante. Mas terminou lá a sua adolescência e, com vinte e quatro anos, já é considerado um dos melhores. Ganhou o respeito dos colegas, nada muito além disso.

Depois de mais uma demonstração, é a vez da moça sorteada no grupo, que espera, sorridente, batendo palminhas curtas, quase inaudíveis. Demétrio cede a ela a primeira peneirada, encarregando-se das últimas duas. Verifica, nada. É muito difícil que apareçam diamantes em uma chance única, mas os turistas pagam para ver. Depois de três séculos de exploração, o garimpo manual dá quase mais lucro como atração turística.

Terminado o dia, Demétrio chega à sua peça única de alvenaria, passando reto por Veridiana. Toma banho e senta-se à mesa já posta. Ela lhe pergunta como foi o dia, ele resmunga a resposta, e os dois continuam a comer em silêncio. Ele tem, como sempre, o olhar mirado na terra. Demétrio é de poucas palavras.
− Sai, que não te quero mais − ele diz.

O rio baixa e volta a subir, e Demétrio percebe que Veridiana não fazia mesmo diferença. Agora, atreve-se até a levantar os olhos, por alguns segundos, para ver mais do que os pés das visitantes. Faz questão de ceder a mão para que elas não caiam no rio. Demétrio tem marcas de sol ainda rasas e as sobrancelhas, que se unem entre os olhos, lhe dão um ar mais maduro e sério. Tem um nariz grande, alongado e o lábio inferior mais grosso que o superior. O corpo esguio quase não veste camisa. Mesmo que pouco se escute sua voz, ele não passa despercebido. As mulheres da região andam até mais arrumadas, e os homens, mais carrancudos.

Com a mão na direção do sol, o olhar fixo na pedra entre os dedos, Demétrio não percebe a aproximação de Regina, a filha mais nova de José, o centro-avante dos jogos de quinta-feira. Não é a primeira vez que a menina sardenta o observa. Ela desce até o rio, levanta a barra do vestido amarelo e senta-se à margem, colocando os pés na água. Demétrio olha para suas pernas, volta às bateias, pernas, bateias.
− Aqui não é lugar de mulher.
− Ah é? Onde é lugar, então?

Mesmo sem resposta, à noite ela aparece na peça única. E os dois iniciam uma série de encontros escondidos. Demétrio chega a acreditar que está apaixonado. Mas o romance dura só até José descobrir quem é o maldito que desvirginou a sua filha. Por sorte, Regina consegue fugir para o sítio de uma prima em terceiro grau. Agora, nas quintas-feiras, Demétrio joga canastra.

Onde há água, a poeira não demora a baixar. Mas Demétrio não deixa que ela se assente por muito tempo. Da última mesa do Bar do Gordo, depois de cinco doses de pinga, ele avista as sandálias de couro, as pernas morenas que terminam na saia curta, a blusa de renda branca, o decote: Estela. Estela do Adão, como a chamam − porque ela é mesmo uma das posses de Adão, guarda fiscalizador do garimpo. Demétrio levanta-se, vai até ela e, com todos os dedos, agarra-lhe o pulso. No susto, ela se vira. Sem uma palavra, ele a encara.
− Tá maluco? − diz ela, puxando o braço − o Adão te mataria só por encostar em mim.
Ele a solta, dá as costas e vai para casa a passos ríspidos. Ela olha para os lados, vai até o balcão, pede uma dose dupla, bebe num gole e segue os passos dele.

Ser o amante parece-lhe interessante, por algum tempo. O perigo, a aventura, as curvas de Estela. Mas o que poderia acabar com perda de emprego ou de vida, acaba com a perda da graça. Como as outras, ela não é grande coisa.

Demétrio passa a trabalhar além do horário. Encontra mais pedras em três meses do que os outros em um ano. Recebe todos os turistas e, de vez em quando, ainda que sem sorrir, até posa para foto. Compraz o patrão, que o agradece com tapinhas nas costas e um sábado de repouso por mês.

Numa dessas folgas, ele tira o dia para passear em Gouveia, cidade vizinha, que dizem ter um bom comércio de pedras decorativas. Perdido, aproxima-se hesitante de um grupo de moças que conversam em roda. Pergunta-lhes para que lado fica a Serra do Chapéu do Sol. Elas riem baixinho e uma delas responde, estendendo-lhe a mão:
− Ana Clara, muito prazer. Eu mostro pra você onde fica.
Caminhando por entre ruelas, ela lhe apresenta pessoas e lugares. Mas ele esquece de ouvi-la, desorientado entre seu vestido de chita e a alfazema que exala. Ela tem o pescoço longo e os cabelos castanhos mal presos a um passador. Franze o nariz ao sorrir e saltita quando aponta para uma coisa bonita. Seu caminhar não tem ruído.
− É você. Só pode ser você − ele a interrompe.
− O quê?
Ele sorri e a convida para passear algum dia pelo Caminho dos Diamantes, na Estrada Real.
Ela não demora a aceitar o convite. E tornar a aceitar. E por alguns meses, Demétrio só trabalha pensando nos domingos, quando eles se encontram e silenciam por entre as riquezas verdes que os portugueses deixaram para trás.
Ana Clara conhece o povoado, as pessoas e o Garimpo. Demétrio conhece o amor. E depois de ensaiar o pedido por semanas, leva-a até o coreto da praça. Antes que ele comece, ela abre um enorme sorriso e anuncia a notícia:
− Vou me casar com o Barão! Entra comigo na Igreja?

Demétrio a entrega em mãos. E segue a sua vida de garimpeiro.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Pinóquio

A caixinha chegou pelo correio. De: Papai. Para: Vinícius. Em um segundo, o embrulho multicolorido e cheio de laços foi todo rasgado. O menino abriu a caixa e tirou dela um boneco de madeira com nariz enorme. Sacudiu o brinquedo, que tinha as partes unidas apenas por uma corda elástica e fez com que dançasse no ar. De repente, disse jogando-o no chão:
- Boneco mentiroso!
A mãe recolheu o boneco e sorrindo disse que era mentiroso só na história. Que era uma graça o Pinóquio e que ele não devia fazer desfeita, afinal, se o papai tinha mandado um presente é porque gostava muito do filho. Vinícius manteve o siso, mas tomou o boneco e o levou para o quarto.
No dia seguinte, como sempre, Vinícius chegou do colégio e sentou no sofá ao lado da mesa do telefone. Ao invés de ligar a TV, dessa vez ficou brincando com o boneco. De quando em quando fitava o telefone. Depois de uma hora ou duas, quando a mãe o chamou para jantar, ele quebrou um dos braços do boneco e o guardou.
No dia seguinte, repetiu a cena. Desta vez, por fim, quebrou uma das pernas. E assim sucederam-se os dias. Vinícius chegava do colégio, sentava ao lado do telefone e ao final de algumas horas, quebrava um pedaço do boneco. Passado algum tempo, a mãe encontrou apenas pedacinhos de madeira jogados ao lado do telefone. Chamou o menino e, em tom severo perguntou por que ele havia destruído o boneco daquele jeito. Que era muito, muito feio um menino agir daquela forma. Ao que Vinícius respondeu aos gritos:
- Quebrei porque ele é mentiroso, entendeu? Men-ti-ro-so!

domingo, 12 de abril de 2009

O lenço

São quinze para as seis da manhã e vou para a academia a pé - os quatrocentos e cinquenta reais não incluem passagem. Fico lá, mudo, das sete às três da tarde, sem intervalo. Aperto o passo porque se o lugar não estiver brilhando até os primeiros alunos chegarem, é demissão na certa. Está clareando o dia e a cidade começa os seus primeiros movimentos. Minha distração é interrompida por um estouro.
Uma senhora está no chão e seus embrulhos espalhados pela calçada. Corro até ela, enquanto tateio o bolso da calça. Ela levanta o rosto, de onde sangue lhe escorre de um corte aberto na sobrancelha. Encontro o lenço. Mas o semblante da mulher me assusta. Não pelo sangue, mas pela expressão de dor acostumada. A queda lhe parece natural. Seus olhos de auto-piedade contida não pedem ajuda, ou consideração. Não há um mísero suspiro que alivie a raiva do acidente. Seus gritos são mudos.
Começo a tirar o lenço do bolso. Lenço que não limpará a sujeira que ela sente por dentro, nem a deixará mais digna, ou menos infeliz. Mas quem sabe limpe a expressão que me tortura, a vontade que tenho de sair correndo. Por que este corpo inerte me aponta assim? Queria que o lenço amenizasse ao menos as cicatrizes internas. Enxugasse o sofrimento. Tornasse a vida menos oca. Ela sentindo que me importo, ainda que não me importe realmente.
Seria bom se, como uma dama antiga, essa mulher tivesse jogado o lenço ao vento e eu por cortesia o devolvesse. Mas ela não pede cortesia. E o que jogou ao chão foi o corpo inteiro. Como matéria cansada de existir. Deixou-se tropeçar, levando joelhos e ombros a encontrarem o cimento cru, até que sua cabeça golpeasse a pedra. Seu braço tem agora carimbada a textura da laje. O sangue adentra as rugas que lhe acrescentam anos.
Enquanto tiro o lenço do bolso, me pergunto quem é essa mulher. Por que se deixa cair? Por que não levanta e não pragueja a pedra que a derrubou? Por que não age? Que ao menos chorasse, criatura sem útero!
Termino de tirar o lenço do bolso. A mulher levanta-se sozinha, com dificuldade apressada. Enquanto ela junta os pacotes, a encaro. A blusa rasgada na altura do peito, os joelhos em carne viva, o rosto de bicho. Meio masculino, talvez. Causa-me raiva, nojo, repulsa. Pergunto se ela está bem e sigo. No caminho, não posso evitar o uso do lenço. Esfrego-o nos meus olhos, na testa, nas mãos, nos braços, nos joelhos. Guardo-o e consigo chegar ainda pontualmente ao trabalho.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

O poder da retórica

− Eu vou no Méqui TODOS os dias.
− Ai, que horror!
− Que horror, por quê? É super legal, tá?
− É nada, a minha mãe disse que faz mal.
− Mal por quê?
− Porque é porcaria.
− Ai, tá, eu não vou toooodos os dias, né?
− Ela disse que tem um montão de gordura trens.
− Gordura o quê?
− Ah, eu não sei, mas ela disse que é uma coisa que mata do coração e que ainda por cima, deixa a gente bem gorda e cheia de celulite.
− Eu não tenho celulite.
− Ainda! Logo, logo vai aparecer. Até no olho.
− Na verdade, eu vou só de vez em quando lá, nem é tanto.
− Ela disse também que eles usam carne de minhoca pra fazer os hambúrgueres.
− Dã, nada a ver.
− É sim. E que o refri que eles vendem faz apodrecer os ossos e tem tanto açúcar que você vai ficar banguela com 20 anos.
− Isso não acontece com quem vai raramente, que nem eu.
− Você sabia que depois de 10 minutos que a comida fica parada, eles jogam fora porque fica ruim? O mesmo acontece com o seu estômago, estraga. Fica verde.
− Nem fica verde.
− Fica sim. Ah, e sabe o escorregador colorido? Diz que colocam gilete pras crianças se cortarem.
− Eu nunca me cortei.
− Você é exceção. E da próxima vez se corta.
− Eu nunca me cortei porque eu nunca fui. Na verdade eu nem gosto de Méqui, tá? Eu só tava te enganando. Rá, até Parece! Idiota!

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Geléia

Cláudia desliga o computador, pega a bolsa, apaga a luz e entra no elevador. Encontra alguns colegas, fala sobre o tempo, a família, o Natal, que está aí.
Entrando no carro, puxa o espelho retrovisor, passa um batom cor de boca, repara nas olheiras, remexe na bolsa, recoloca o espelho na posição correta e liga o rádio.
Estaciona no supermercado e ao descer do carro, esfrega as mãos no vestido, tentando em vão desamassá-lo. Tira papel e caneta da bolsa e começa a passear entre as prateleiras apoiada no carrinho, como se ele é que a levasse.
Risca o papel. Queijo, peito de peru, pão light.
Pega um pote de geléia diet e o analisa cuidadosamente. 30 kcal por 10g (1 colher de chá). Continua parada calculando. Levanta a cabeça, volta a cabeça pra a geléia e num movimento rápido, levanta a cabeça novamente. Joga a geléia no carrinho, vira para o lado oposto, caminha rápido. Pára e pega qualquer coisa que está em uma prateleira baixa. Fica agachada por alguns segundos, olha para os dois lados e levanta. Morde o lábio inferior. E num gesto quase automático de esticar e dobrar o braço, joga coisas no carrinho sem olhar. Geléia de morango, geléia de figo, geléia de goiaba, geléia de abóbora, geléia de abóbora com coco.
Procura uma direção. Vira-se para outra prateleira, rói uma unha. Caminha rápido de novo, focando os caixas.
Filas. Vai em direção à saída mas volta. Entra em uma das filas e fica de cabeça baixa, olhando para as geléias. As mãos estão suadas e trêmulas. Sente uma mão no ombro. Os joelhos dobram-se sutilmente como se as pernas não lhe quisessem mais obedecer, ao que ouve:
− Oi Claudinha.
− Marcelo, você? Que coincidência, chegou agora? Como é que vai a vida? Eu estou ótima, saindo do trabalho, correria como sempre, sabe como é, né? Ah, por sinal, tem uma calça tua lá em casa, te mando por boy? Bom, preciso ir, estou com pressa, correria, já disse, né? Tchauzinho, bom te ver, até mais.
E o Marcelo permanece na fila. O carrinho da Cláudia também.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Indiferença

Quando desceu do ônibus, não precisou certificar-se de que aquele era o seu destino. Olavo o descrevera com rigor:
– Uma cidade dormitório, Tadeu, uma coisa inchada e encardida.
Não havia estação rodoviária, o mínimo que se espera de uma cidade que não seja apenas um vilarejo disfarçado. Tadeu teve que descer em uma parada lotada, à beira daquela larga faixa de asfalto que fatiava a cidade. Fatias que se equiparavam em atrocidade arquitetônica: imperavam venezianas em plástico que um dia foi branco e paredes salpicadas, pintadas em bege – essa cor horrenda que não se sabe branca nem suja –, e basaltos acachapantes. Ali não havia nada que não fosse absolutamente quadrado, tedioso.

A posição de Tadeu era muito boa. Junto a Olavo, tinha um dos maiores salários da empresa, gerenciando três fábricas da gigante calçadista Schumacher, apenas pela Internet e pelo telefone. No ano de 2007 porém, a fábrica de Lindolfo Collor teve uma queda de produtividade, ameaçando os lucros da Companhia. Antes de uma atitude mais drástica, Tadeu foi mandado para a cidade, para tentar solucionar o problema.
No dia seguinte à chegada, após uma noite na única pousada − se é que assim se podia chamar − do local, Tadeu foi a pé até a fábrica. No caminho, já respirando o fedor de borracha, parou para observar as ruas. As casas sem jardim não lembravam em nada uma cidade do interior. Sequer havia pássaros, já que também não havia árvores. Uma pequena construção, onde se lia “Escola municipal”, tinha as portas trancadas. Na rua não se viam bolas ou bonecas. As cores, o silêncio, tudo parecia indiferente.
Tadeu acompanhou o dia dos funcionários, analisando suas atividades, que iniciavam às seis horas e terminavam às vinte. (Para dados de carteira, eram assinadas apenas oito horas de trabalho). Em Lindolfo Collor, as leis não chegavam. Nem as reclamações. Agradecia-se a Deus por um emprego.
À noite, apesar de exausto, Tadeu aceitou o convite para jantar na casa de Carlos, o sub-gerente da fábrica. Sua esposa, que também trabalhava lá, iniciou rapidamente o jantar assim que chegaram, como de costume. Tadeu aproveitou-se das conversas para investigar os problemas e os costumes dos funcionários, enquanto comiam o ensopado de chuchu. Depois, já que era uma sexta-feira, foi convidado a jogar um pouco de canastra.
No sábado, depois de analisar vários dados, Tadeu acreditou ter encontrado o problema. Passou horas escrevendo um projeto que previa a motivação dos funcionários. Demandava um valor razoavelmente alto, mas que seria, certamente, recompensado.
Depois de aprovado pelo presidente, o projeto foi lentamente sendo concretizado. De fato, a fábrica aumentou um pouco seus números de produtividade. Tadeu ficou orgulhoso porque com o projeto, não só acabou sendo promovido, como conseguiu mudar a vida daquelas pessoas. Agora elas têm uma rodoviária. E às vinte horas, quando saem do trabalho, conseguem até ver as luzes da nova praça da cidade. E então vão dormir em suas lindas casas amarelas, azuis e verdes.
Nas sextas-feiras, jogam canastra.

domingo, 10 de agosto de 2008

Alheio Diário

27/03, 9h00 − Sr. Onofre atravessa a sala, cheira o queijo, esnoba e segue para a toca.

Renato já não podia suportar. Todos os dias, todas as noites, o tormento era certo. E o fracasso ria da sua cara. Ele acordava e montava ou remontava as ratoeiras. Três na cozinha, duas na sala, duas no quarto, em todas as peças. Estava quase posicionando alguma sobre o próprio corpo ou no prato em que comia. O rato já tinha até nome: Onofre. Para ser exato, Senhor Onofre. Devia-se respeito a um rato que tinha o corpo fechado. Havia ficado claro que apenas ratoeiras não funcionariam. Para facilitar a captura, Renato tinha passado a fazer um monitoramento, registrando os movimentos do rato em seu próprio diário.

29/03, 15h20 − Sr. Onofre dorme, depois de ter desfeito mais uma ratoeira. Maldito!

A cada semana, a casa conhecia um novo exterminador, se é que assim podiam ser chamados. Não que eles não matassem nada. Algumas aranhas, baratas e tatus-bola eram sempre considerados. Mas o rato, ah, o rato, esse não. Renato já tinha virado perito em empresas exterminadoras. E esgotado o guia telefônico. Chegou a viajar a uma cidade vizinha em busca do homem que se dizia o melhor.

02/04, 18h40 − Nada. Mais um bocó! Se quer algo bem feito, faça você mesmo!
Já havia alguns meses que Renato não ia trabalhar. Começou desculpando-se com doença aqui, doença lá, mas foi obrigado a pedir uma licença. Era preciso tempo para observar os hábitos diurnos do Senhor Onofre. Ajudaria na captura.

05/04, 22h05 − Acho que ele usou o novo veneno como tempero, porque as ratoeiras estão todas desfeitas e continuo a ouvi-lo. Devem ser risadas.

Gabi já não aparecia mais, Renato andava muito ocupado para namorar. À noite, era preciso silêncio e escuridão para que o Senhor Onofre pudesse agir e, finalmente, cair em alguma armadilha.

08/04, 02h27 − Acordei achando que era ele na cama. Mas não, não... Acho que foi sonho.
O tempo foi passando, e o Senhor Onofre continuava a reinar na casa. Na verdade, Renato estava quase afeiçoado aos seus barulhinhos, aos restos que deixava, às ratoeiras desfeitas com tanta coragem. Andava até comprando uns queijos mais finos. Fingia para si não ter desistido.

10/04, 09h10 – Preciso arranjar um gato. É isso! Um gato...

Renato conseguiu um gato. Quer dizer, um filhote de angorá, que fugiu em desespero na primeira aparição do Senhor Onofre. Ao assistir a cena de camarote, Renato soltou uma gargalhada e um controlado “yes!”. E observou, com um sorriso, o rato correr de volta para a toca.

12/04, 08h17 – Não pode ser! Não! O corpo do Sr. Onofre está estendido no meio da cozinha. Duro, estático, não mexe uma perninha. Por quê, meu Deus? Será que foi o brie?

Depois de uma cerimônia íntima de funeral, a primeira semana do luto passou rápido. Renato teve que trabalhar. Gabi o perdoou e começou a freqüentar a casa de novo. As pesquisas cessaram. A família voltou a fazer ligações. O silêncio noturno acabou. Alguns antigos colegas retornaram à cidade e tinha até churrasco no domingo seguinte.

19/04, 10h20 − Nada desorganiza mais as coisas de um homem do que a morte.
* Texto publicado no Livro Pedra, Papel e Tesoura, lançado em 2008