sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Mulheres odeiam putas

Não adianta negar. Não adianta fazer careta longa enquanto busca argumento. Se você é mulher, você odeia putas. Com o foco voltado para as que usam o leve eufemismo “garota de programa”. Essas que podem ser até suas vizinhas e você nem desconfiar.
Mas tudo bem, não precisa se desculpar. É compreensível. Há que se considerar que este não é um ódio gratuito. Não. O que é isso, não seríamos assim tão pequenas. Há inúmeras razões e todas elas justificáveis.
A começar pelo seguinte: putas não são bonitas. São absurdamente bonitas e estupidamente gostosas. (Mesmo que não sejam). Imagine uma garota de programa. Ela tem celulite? Claro que não. Pode até ser vulgar, mas com certeza não tem peito caído, não tem meio centímetro a mais de cintura, nem um a menos de bunda e se duvidar, nem pentelho tem. Quem é que pode competir com uma mulher photoshop?
Além de serem a oitava maravilha da rua, ainda têm vida mansa. Trabalham na cama, não precisam fazer academia, afinal, o exercício é constante e, para os homens, nada de cozinhar, passar, criar filhos. Só ficam com a parte boa. E ainda ganham pra isso!
Homem não encontra puta com bafo da manhã, nem com conjuntivite. Ela vai ter sempre a mesma imagem maquiada, perfumada e com a langerie mais sexy do mundo. Sem contar que homem também não transa com a mesma puta por dez anos. Portanto, tudo o que ela faz é novidade, é tesão, é incrível, é tudo o que ele quiser.
Puta não cobra nada além de dinheiro. E puta não descobre que o cara é casado, ela já sabe.
Pra ser puta não precisa nem ser inteligente. Não precisa estudar, se especializar, fazer mestrado, doutorado o escambau. Elas com pouca experiência ganham muito mais do que nós com tudo isso. Fora que mercado, pra elas, NUNCA vai faltar. Nunca mesmo.
Andei por um tempo considerando que elas até podiam ter o seu mérito, que é, afinal, um trabalho honesto, legal, que deve até pagar imposto. Mas aí veio a última punhalada. Agora, tenho respaldo para o meu ódio. Eu aqui, fazendo oficinas, lendo que nem uma condenada, escrevendo minhas crônicas, meus continhos. Juntando uns pilas, implorando pelo-amor-de-Deus um patrocínio pra publicar um livro e quem me entra pra lista de best sellers? Quem? Uma puta! Aí é demais! Aí é o seguinte: ou linchamos todas, ou batemos na porta de um 'night club' pra ver se alguma dá umas dicas, uma oficina, um curso à distância, pelo menos. Porque desse jeito, puta que pariu!

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Geléia

Cláudia desliga o computador, pega a bolsa, apaga a luz e entra no elevador. Encontra alguns colegas, fala sobre o tempo, a família, o Natal, que está aí.
Entrando no carro, puxa o espelho retrovisor, passa um batom cor de boca, repara nas olheiras, remexe na bolsa, recoloca o espelho na posição correta e liga o rádio.
Estaciona no supermercado e ao descer do carro, esfrega as mãos no vestido, tentando em vão desamassá-lo. Tira papel e caneta da bolsa e começa a passear entre as prateleiras apoiada no carrinho, como se ele é que a levasse.
Risca o papel. Queijo, peito de peru, pão light.
Pega um pote de geléia diet e o analisa cuidadosamente. 30 kcal por 10g (1 colher de chá). Continua parada calculando. Levanta a cabeça, volta a cabeça pra a geléia e num movimento rápido, levanta a cabeça novamente. Joga a geléia no carrinho, vira para o lado oposto, caminha rápido. Pára e pega qualquer coisa que está em uma prateleira baixa. Fica agachada por alguns segundos, olha para os dois lados e levanta. Morde o lábio inferior. E num gesto quase automático de esticar e dobrar o braço, joga coisas no carrinho sem olhar. Geléia de morango, geléia de figo, geléia de goiaba, geléia de abóbora, geléia de abóbora com coco.
Procura uma direção. Vira-se para outra prateleira, rói uma unha. Caminha rápido de novo, focando os caixas.
Filas. Vai em direção à saída mas volta. Entra em uma das filas e fica de cabeça baixa, olhando para as geléias. As mãos estão suadas e trêmulas. Sente uma mão no ombro. Os joelhos dobram-se sutilmente como se as pernas não lhe quisessem mais obedecer, ao que ouve:
− Oi Claudinha.
− Marcelo, você? Que coincidência, chegou agora? Como é que vai a vida? Eu estou ótima, saindo do trabalho, correria como sempre, sabe como é, né? Ah, por sinal, tem uma calça tua lá em casa, te mando por boy? Bom, preciso ir, estou com pressa, correria, já disse, né? Tchauzinho, bom te ver, até mais.
E o Marcelo permanece na fila. O carrinho da Cláudia também.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Duberot

Ah, Duberot. Quantas coisas eu vejo através dele. Meu primeiro quarto, as tias da creche, o toca-discos do Mickey (aqueles pra discos pequenininhos), a minha vizinha que comia cola... Não é incrível como Duberot esteve presente nas nossas vidas? O que, vai dizer que você não sabe quem é Duberot? Ora, faça-me rir. Talvez não esteja associando agora, mas eu lhe refresco a memória. Duberot poderia ter sido um filósofo francês, importantíssimo. Criador da teoria do Caos da Prosódia, amigo e tutor de Sartre, a quem teria emprestado alguns de seus versos. Poderia ter sido também um prato fino. Comeríamos Duberot ao molho de trufas, acompanhado de um Dom Perignon em alguma noite de comemoração. Nas versões menos refinadas, Duberot seria o nome de um cabaré chique, para o qual rapazes se desesperariam a fazer identidades falsas. Ou, quem sabe, pudesse ser apenas um arroto leve, depois do qual diríamos:
− Desculpe, duberrei.
Mas não, Duberot preferiu enobrecer a nossa infância com música e risadas. Preferiu unir nossas mãos, fazer a poeira subir ao rosto, borrar nossos olhos de estrelas. Todavia, confesso que, apesar de tudo, Duberot me trouxe uma grande decepção. Comigo mesma, em primeiro lugar, por ter levado vinte anos da minha vida pra descobrir quem ele era, de fato.
Pior do que descobrir que o meu Q.I. não era lá o mais alto do bairro, foi descobrir o que até então me era muito confortável não saber. Pra quê? Eu estava tão afeiçoada à ignorância. Aliás, sou afeiçoada ao desconhecimento em uma série de coisas. A ignorância é o lar seguro da ingenuidade. É aquela casinha branca, onde se vive de poesia, de mistério, de fábula, de idéias despretensiosas, contentes por si. (Ok, piegas, mas e daí?). Gosto de ignorar a coluna policial, a coluna social e um bando de teorias. Gosto de ignorar o futuro, era o que me faltava cartomante vir contar final de livro que eu ainda nem escrevi. Adoro os absurdos de butiquim, nos quais a gente afirma de forma veemente coisas sobre as quais não faz a menor idéia. Me divirto pacas até que alguém embase teoricamente o argumento contrário, afirmando que todos os livros do fulano provam que... enfim.
Duberot por si só já era suficiente para eu me apegar à ignorância. Tudo o que sentia ao ouvi-lo era alegre e doce. Podia enxergar o joão-bobo que eu tinha no quarto e sentir o gosto da sopa de feijão da minha avó. Podia me ver pulando no meio da roda, feliz e rindo ao final, quando me atirava no chão. Agora, rá, agora fico pensando que mal sabia eu que gargalhava e sapateava as custas do desespero de um pobre bicho. Que Isso não é coisa que se ensine pra criança, que não quero passá-lo adiante e que preciso montar uma estratégia para não ter que contar esse clássico para os meus filhos. Tudo isso porque achei uma porcaria de encarte de cd, onde dizia: “...do berro/ do berro que o gato deu/ miau”. A partir daí, virei uma chata de galocha. Quero não saber que peito cai, que bolo de chocolate engorda e que o Keanu Reeves é veado. Quanto ao Papai Noel, posso até perdoar. Mas Duberot, que se dane!

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Indiferença

Quando desceu do ônibus, não precisou certificar-se de que aquele era o seu destino. Olavo o descrevera com rigor:
– Uma cidade dormitório, Tadeu, uma coisa inchada e encardida.
Não havia estação rodoviária, o mínimo que se espera de uma cidade que não seja apenas um vilarejo disfarçado. Tadeu teve que descer em uma parada lotada, à beira daquela larga faixa de asfalto que fatiava a cidade. Fatias que se equiparavam em atrocidade arquitetônica: imperavam venezianas em plástico que um dia foi branco e paredes salpicadas, pintadas em bege – essa cor horrenda que não se sabe branca nem suja –, e basaltos acachapantes. Ali não havia nada que não fosse absolutamente quadrado, tedioso.

A posição de Tadeu era muito boa. Junto a Olavo, tinha um dos maiores salários da empresa, gerenciando três fábricas da gigante calçadista Schumacher, apenas pela Internet e pelo telefone. No ano de 2007 porém, a fábrica de Lindolfo Collor teve uma queda de produtividade, ameaçando os lucros da Companhia. Antes de uma atitude mais drástica, Tadeu foi mandado para a cidade, para tentar solucionar o problema.
No dia seguinte à chegada, após uma noite na única pousada − se é que assim se podia chamar − do local, Tadeu foi a pé até a fábrica. No caminho, já respirando o fedor de borracha, parou para observar as ruas. As casas sem jardim não lembravam em nada uma cidade do interior. Sequer havia pássaros, já que também não havia árvores. Uma pequena construção, onde se lia “Escola municipal”, tinha as portas trancadas. Na rua não se viam bolas ou bonecas. As cores, o silêncio, tudo parecia indiferente.
Tadeu acompanhou o dia dos funcionários, analisando suas atividades, que iniciavam às seis horas e terminavam às vinte. (Para dados de carteira, eram assinadas apenas oito horas de trabalho). Em Lindolfo Collor, as leis não chegavam. Nem as reclamações. Agradecia-se a Deus por um emprego.
À noite, apesar de exausto, Tadeu aceitou o convite para jantar na casa de Carlos, o sub-gerente da fábrica. Sua esposa, que também trabalhava lá, iniciou rapidamente o jantar assim que chegaram, como de costume. Tadeu aproveitou-se das conversas para investigar os problemas e os costumes dos funcionários, enquanto comiam o ensopado de chuchu. Depois, já que era uma sexta-feira, foi convidado a jogar um pouco de canastra.
No sábado, depois de analisar vários dados, Tadeu acreditou ter encontrado o problema. Passou horas escrevendo um projeto que previa a motivação dos funcionários. Demandava um valor razoavelmente alto, mas que seria, certamente, recompensado.
Depois de aprovado pelo presidente, o projeto foi lentamente sendo concretizado. De fato, a fábrica aumentou um pouco seus números de produtividade. Tadeu ficou orgulhoso porque com o projeto, não só acabou sendo promovido, como conseguiu mudar a vida daquelas pessoas. Agora elas têm uma rodoviária. E às vinte horas, quando saem do trabalho, conseguem até ver as luzes da nova praça da cidade. E então vão dormir em suas lindas casas amarelas, azuis e verdes.
Nas sextas-feiras, jogam canastra.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Estimação

Animais de estimação devem ser abolidos. Calma, não é que eu os odeie, veja bem, pelo contrário. Mas creio que nos últimos tempos, não andemos merecedores de carregar a palavra “estima” em nosso título de donos. (Não sei se fomos em algum tempo). Pecamos demais, pelo excesso ou pela falta.
Há um problema freqüente nesta relação homem-mascote: os excrementos. Outro dia, sentada no meu terraço, ouvia um vizinho do prédio ao lado gritar enfaticamente (imagino e espero eu que fosse com seu cão): “Faz cocô ! Faz cocô!”. Depois de alguns minutos de silêncio, de novo: ”tu não fez cocô? Faz cocô agora!”. O cão, estúpido, não deve ter encontrado ainda o seu botão de “eject”. Assisti a esse problema a vida toda. É síndico reclamando que o gato do 302 fez no corredor, é vizinha dizendo que o xixi do quarto andar não era da Tchully (o dela era mais amarelo), é criança devolvendo cachorro porque ele não aprende a fazer na hora certa, é bicho morrendo envenenado porque defecou na grama da casa ao lado. Parece que este é mesmo um grande problema. Dos donos.
Você já reparou na explosão, pelo menos aqui no sul, de raças como o shi-tzu, o lhasa apso, o chow chow, o akita? Ok, você não entende patavinas de raça de cachorro, mas deve ter reparado que há por aí uma grande quantidade de pêlos ambulantes. Já deve ter percebido então como ninguém pensa no animal antes de escolher a raça. Pensam, é claro, em desfilar com seus lindos felpudos pelos parques, mas não lembram que no Tibet, no Japão e na China, as temperaturas nos parques não atingem as marcas desérticas do verão porto-alegrense. (Se atingem, os orientais devem também entrar para a lista negra. Junto comigo, que tive três Yorkshires).
Tantas outras coisas sustentam a abolição. Por exemplo, o fato de certas pessoas chamarem passarinho de bicho de estimação. Que tipo de estima se pode ter por uma criatura a qual se assiste morrer sem que tenha feito absolutamente nada na vida, além de andar de um poleiro a outro? E os peixes? Mesmo caso! Certa vez um amigo, (não lembro de tê-lo chamado assim depois deste episódio), me contou que simplesmente esqueceu o seu jabuti na gaveta. Só lembrou quando começou a feder. Pode? Pois é. E essa agora dos passeadores de cachorro? Este fenômeno é sensacional. Não tenho tempo pra ter amigos, compro um cachorro. Não tenho tempo pro cachorro, contrato um passeador. Os passeadores que se cuidem, são os próximos da lista.
Quando não é isso, é o contrário. É o comportamento tresloucado de senhoras a vestirem os seus animais com chapéus e sapatos e levá-los a spas, para desestressarem em ofurôs com pétalas de rosa. Em seguida, a homeopatas, terapeutas florais, psicanalistas, ortodontistas, para colocar aparelho. Esses dias, chamei um senhor para colocar o ar-condicionado aqui em casa. Eu já me sentindo culpada por contribuir para o aquecimento global, sabe o que o homem me diz? Que tinha acabado de instalar um split na casinha de um cachorro. Juro por Deus! (É o que eu digo, primeiro trazem praticamente uma rena pra cá, depois isso.)
Olha, eu amo os bichos. Mesmo, como se todos fossem meus. Sou do tipo chata, que pára dono na rua pra fazer carinho em cachorro e carroceiro pra parar de bater em cavalo. Mas vejo que não precisamos deles, e sim de terapeutas, filhos, namorados, aparelhos de som, robôs, talvez. Por isso digo, os animais de estimação devem ser abolidos. Lei a ser restaurada no dia em que aprendermos a estimá-los de fato, deixando de humanizá-los ou coisificá-los, tratando-os pelo que são.

domingo, 10 de agosto de 2008

Alheio Diário

27/03, 9h00 − Sr. Onofre atravessa a sala, cheira o queijo, esnoba e segue para a toca.

Renato já não podia suportar. Todos os dias, todas as noites, o tormento era certo. E o fracasso ria da sua cara. Ele acordava e montava ou remontava as ratoeiras. Três na cozinha, duas na sala, duas no quarto, em todas as peças. Estava quase posicionando alguma sobre o próprio corpo ou no prato em que comia. O rato já tinha até nome: Onofre. Para ser exato, Senhor Onofre. Devia-se respeito a um rato que tinha o corpo fechado. Havia ficado claro que apenas ratoeiras não funcionariam. Para facilitar a captura, Renato tinha passado a fazer um monitoramento, registrando os movimentos do rato em seu próprio diário.

29/03, 15h20 − Sr. Onofre dorme, depois de ter desfeito mais uma ratoeira. Maldito!

A cada semana, a casa conhecia um novo exterminador, se é que assim podiam ser chamados. Não que eles não matassem nada. Algumas aranhas, baratas e tatus-bola eram sempre considerados. Mas o rato, ah, o rato, esse não. Renato já tinha virado perito em empresas exterminadoras. E esgotado o guia telefônico. Chegou a viajar a uma cidade vizinha em busca do homem que se dizia o melhor.

02/04, 18h40 − Nada. Mais um bocó! Se quer algo bem feito, faça você mesmo!
Já havia alguns meses que Renato não ia trabalhar. Começou desculpando-se com doença aqui, doença lá, mas foi obrigado a pedir uma licença. Era preciso tempo para observar os hábitos diurnos do Senhor Onofre. Ajudaria na captura.

05/04, 22h05 − Acho que ele usou o novo veneno como tempero, porque as ratoeiras estão todas desfeitas e continuo a ouvi-lo. Devem ser risadas.

Gabi já não aparecia mais, Renato andava muito ocupado para namorar. À noite, era preciso silêncio e escuridão para que o Senhor Onofre pudesse agir e, finalmente, cair em alguma armadilha.

08/04, 02h27 − Acordei achando que era ele na cama. Mas não, não... Acho que foi sonho.
O tempo foi passando, e o Senhor Onofre continuava a reinar na casa. Na verdade, Renato estava quase afeiçoado aos seus barulhinhos, aos restos que deixava, às ratoeiras desfeitas com tanta coragem. Andava até comprando uns queijos mais finos. Fingia para si não ter desistido.

10/04, 09h10 – Preciso arranjar um gato. É isso! Um gato...

Renato conseguiu um gato. Quer dizer, um filhote de angorá, que fugiu em desespero na primeira aparição do Senhor Onofre. Ao assistir a cena de camarote, Renato soltou uma gargalhada e um controlado “yes!”. E observou, com um sorriso, o rato correr de volta para a toca.

12/04, 08h17 – Não pode ser! Não! O corpo do Sr. Onofre está estendido no meio da cozinha. Duro, estático, não mexe uma perninha. Por quê, meu Deus? Será que foi o brie?

Depois de uma cerimônia íntima de funeral, a primeira semana do luto passou rápido. Renato teve que trabalhar. Gabi o perdoou e começou a freqüentar a casa de novo. As pesquisas cessaram. A família voltou a fazer ligações. O silêncio noturno acabou. Alguns antigos colegas retornaram à cidade e tinha até churrasco no domingo seguinte.

19/04, 10h20 − Nada desorganiza mais as coisas de um homem do que a morte.
* Texto publicado no Livro Pedra, Papel e Tesoura, lançado em 2008

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Vinho Doce

Não suporto vinho suave. Além de ser intragável, ocupar espaço nas vinícolas e atrair um excesso de paulistas para a nossa serra, me traz lembranças com as quais não lido nada bem. Não são de ressaca, não. Eu era muito nova pra essas coisas na época. Tinha uns seis anos, talvez sete. Nem todas as cores da cena devem estar muito corretas na memória, mas a essência tenho bem clara. Estávamos em Araçoiaba da Serra, SP, eu e minha mãe. O que diabos faz uma criatura nesse fim de mundo? Bom, eu fui me divertir com patos, vaquinhas, coelhos, cachorros, mato, enfim. Já a minha mãe foi me levar pra me divertir com patos, vaquinhas, mato, enfim. Ela fazia muito disso por mim. Não é que desgostasse desse tipo de programa, mas imagino que, sozinha, não fosse parar naquele lugar. Ao menos, não em janeiro.
Era dia vinte e sete. Tão pequena, não consegui encontrar um bolo e muito menos velinhas pra botar em cima. Fui então ao restaurante do hotel e pedi um vinho suave, esclarecendo que o dia era especial e que não poderiam pedir autorização, já que se tratava de uma surpresa. Cheguei no quarto com o vinho atrás das costas e um sorriso maroto que se desmanchou fácil. Fiquei atônita. Me deparei com as mãos da minha mãe a cobrir os olhos. Chorava alto. Permaneci olhando, parada, sem saber o que fazer. Ela antecipou que não era nada. Eu, assustada, não consegui abraçá-la. Tirando o vinho da retaguarda, balbuciei:
− Ó, mãe. Por favor, não chora. Por favor.
Ela chorou mais.
Fico aqui pensando se a cena teria sido muito diferente se eu tivesse vinte e cinco ou quarenta e cinco, e não cinco. Porque creio que o vinho na minha mão, possa ser a bicicleta na mão de algum pai, a cuca na mão de uma avó, as flores de um namorado, a roupa lavada em cima da cama. Não que tudo isso não seja bom e válido, mas carinho mesmo tem som, tem tato e precisamos desse acalanto para nos reconhecermos como vivos, reais, amados.
Sabe, dizem que vivemos a era do eu, do individualismo. Mas, por outro lado, vejo que existe uma vontade tão grande de conhecer o outro, de estar perto, de ser o outro, quem sabe. Estão aí os reality shows, que não me deixam mentir. Penso que talvez o problema seja outro. Mesmo no país do jeitinho: falta jeito.
Desaprendemos. Nos amedrontamos. Nos tornamos secos. Não sabemos mais como dizer as coisas, os olhares já não se encontram. Colocamos limites altos no toque, abraçamos de longe, damos duas encostadas de bochecha ou um leve aceno já serve? Queremos o outro, mas o outro se tornou um cristal fino que manejamos desajeitadamente. Ou que pior, com medo de quebrá-lo, simplesmente apreciamos de longe.
Pensando bem, um brinde aos vinhos suaves, era deles que minha mãe gostava. E enquanto a nossa capacidade não permitir que sejamos melhores, ao menos eles saberão ser doces.