domingo, 28 de setembro de 2008

Trajeto Dominical

Os jacarandás abraçam delicadamente os passantes, emoldurando a avenida. Passos lentos intercalam calçada e rua onde grande concorrência busca o foco dos olhares.
Ipês, cedros, garaperas. Alguns em entalhe, alguns in natura, enternecem o ambiente com seu aroma bucólico. Balões e cata-ventos dançam suavemente na paisagem. Verdes, azuis, amarelos, doces algodões passeiam no alto, entre a multidão.
Caixas esperam chás, anéis esperam mãos. Índios transformam palha em cultura ocidental.
Sotaques.
Bruxas que não voam, mas flutuam. Flores que não crescem, mas bem sabem fingir. Quadros, vasos, fontes, bailarinas no ar.
Vinte e sete, quarenta, cinco, três por dez. Pechinchas. Conhecidos olás, gargalhadas. A mistura adocicada de incensos invade suave as narinas enquanto as estátuas se movem.
No vazio dos carros, outras rodas disputam espaço. Uns de capacete, outros com chocalhos. Dálmatas, poodles, labradores, pitbulls, rugas em coleiras desfilam com roupas e enfeites, enquanto vira-latas mendigam olhar.
Mais incensos. Mais abraços. O tilintar das pedras suspensas anuncia o abrandar do calor, enquanto o sol quadricula os rostos.
Um artista faz do asfalto tela. Outro, com seu velho número, ainda encanta. Neste lugar onde as folhas além de sombra, fazem música.
Na grama, nos bancos, a caminhar, o gosto amargo da erva traz o personagem que ora protagonista, ora coadjuvante, está presente em todas as histórias que se passam neste ou em outro domingo, no Brique da Redenção.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

O poder da retórica

− Eu vou no Méqui TODOS os dias.
− Ai, que horror!
− Que horror, por quê? É super legal, tá?
− É nada, a minha mãe disse que faz mal.
− Mal por quê?
− Porque é porcaria.
− Ai, tá, eu não vou toooodos os dias, né?
− Ela disse que tem um montão de gordura trens.
− Gordura o quê?
− Ah, eu não sei, mas ela disse que é uma coisa que mata do coração e que ainda por cima, deixa a gente bem gorda e cheia de celulite.
− Eu não tenho celulite.
− Ainda! Logo, logo vai aparecer. Até no olho.
− Na verdade, eu vou só de vez em quando lá, nem é tanto.
− Ela disse também que eles usam carne de minhoca pra fazer os hambúrgueres.
− Dã, nada a ver.
− É sim. E que o refri que eles vendem faz apodrecer os ossos e tem tanto açúcar que você vai ficar banguela com 20 anos.
− Isso não acontece com quem vai raramente, que nem eu.
− Você sabia que depois de 10 minutos que a comida fica parada, eles jogam fora porque fica ruim? O mesmo acontece com o seu estômago, estraga. Fica verde.
− Nem fica verde.
− Fica sim. Ah, e sabe o escorregador colorido? Diz que colocam gilete pras crianças se cortarem.
− Eu nunca me cortei.
− Você é exceção. E da próxima vez se corta.
− Eu nunca me cortei porque eu nunca fui. Na verdade eu nem gosto de Méqui, tá? Eu só tava te enganando. Rá, até Parece! Idiota!

domingo, 7 de setembro de 2008

Noite estrelada

Sentado em um pequeno morro, me dou conta de que, como as pinturas expressionistas, ela fica muito mais bela de longe. Embora a distância me prive do seu jeito divertido, do seu cheiro adocicado, da música que vibra por cada poro seu, me ausenta também de tudo o que impede o meu amor. Agora entendo porque tantos se apaixonam por ela. Por medo ou por querer mantê-la intocável, certamente nunca se aproximam o suficiente e a observam sempre como a observo agora. Assim, de fato, é impossível não a desejar.
Contudo, um dia eu cheguei perto. Perto demais. E não foi difícil para ela me seduzir. Com suas histórias, com suas filosofias, com seu olhar, distinto de todos os que já havia conhecido. Levava-me a incríveis passeios, nos quais tentava me convencer de que não precisávamos de muito para viver. Mostrava-me em voz miúda porém, o limite para o pouco − em sua vida, ultrapassado o tempo inteiro. Ainda que jamais admitisse, só não passava fome porque sabia bem se virar. Um trambique aqui, uma malandragem ali e, no fim, as coisas se ajeitavam. Era triste vê-la maltrapilha. Logo ela, que era tão bonita.
Tinha muitos filhos, mas parecia se importar mais com os filhos dos outros. Estava doente, creio eu. Louca, talvez. Era incompreensível, para mim, o caminho que tinha tomado. Como tão talentosa e capaz, se contentava com o nada que lhe era oferecido. Eu sabia que sua criação tinha sido muito complicada. O que não lhe havia sido imposto, havia sido proibido. Entretanto, se era tão idealista e teimosa, por que não argumentava? Estava bem crescida para tomar outro rumo. Tão forte e, às vezes, um bichinho assustado.
Sentia por ela um misto de pena, raiva e paixão. Ainda que exercesse um grande encantamento sobre mim, nunca pude perdoar todas as mentiras que me disse. Que dizia a todos. Na realidade, não sei ao certo se eram mentiras ou ilusões. Não sei se ela tinha vergonha do fracasso ou se, em sua insanidade, realmente acreditava que havia chegado ao triunfo. O que sei é que quase tudo o que contava era irreal. E, estranhamente, isso era o que mais atraía a todos.Quando estávamos juntos, havia sempre a próxima dança, embalada pelo rum. Ela era o meu paraíso-prisão e não posso negar que me envolvi, mas amá-la seria doloroso demais. Por isso, me afastei. Porque daqui, ela é só poesia. Uma obra de Van Gogh. Tão linda que até esqueço de guardar mágoa. E tão frágil que minha única vontade é pô-la nos braços e num acalanto, dizer: calma, Cuba querida, a liberdade já vem.

* Texto publicado no Livro Pedra, Papel e Tesoura, lançado em 2008