segunda-feira, 27 de julho de 2009

O dia

Passantes caminhavam rapidamente. Música alta saía de uma loja e repetidas vozes anunciavam cortes de cabelo e compra de ouro. Ele colocou o banquinho no chão e posicionou-se sobre ele. Botou o chapéu a seus pés, curvou o tronco, olhou para um ponto fixo no primeiro andar do prédio em frente e assim permaneceu. Usava a mochila por baixo de uma bata marrom esfarrapada, formando um calombo nas costas. No rosto, a dentadura postiça e as verrugas falsas mal apareciam debaixo da tinta com brilho que o cobria até os cabelos.

Gente de gravata, gente de uniforme, gente de chinelo, muita gente passou até que a primeira nota fosse colocada dentro do chapéu. Ele piscou e sorrindo moveu-se lento para outra posição. Virado para a praça, encarou o relógio. Quatro horas. Quatro e um, quatro e dois, quatro e três, quatro e meia. Quase sem moedas, esticou-se e voltou a se curvar. O cheiro de pipoca recém feita invadiu a rua. Misturou-se com o de batata frita da lanchonete ao lado. O chapéu ainda com poucas moedas. Quando suas pernas já tremiam, começou a chuva.

Ele se manteve imóvel enquanto a tinta lhe escorria nos olhos. Gota a gota, seu rosto foi se tornando um borrão. A chuva aumentou. As pessoas foram para baixo das marquises. Em volta dele, uma poça dourada se formou. Sob a bata, a tinta ia lhe melando o corpo todo. Os que corriam para não se molhar, lhe respingavam água suja. A chuva ficou cada vez mais forte. Ele foi se curvando devagar até ficar agachado em cima do banco. Olhou para o relógio, para o chapéu e ficou até que as pessoas desistissem de esperar dentro das lojas e fossem embora. A chuva não passou.

Tomou o banquinho e foi ao banheiro público. Saiu com calça jeans e camiseta, que em seguida se encharcaram. No cabelo, algum resto de tinta ainda pingava na roupa trocada. Seu tênis virou esponja barulhenta. Correu até a parada de ônibus, foi para o final da fila e perguntou a alguém se fazia tempo que havia passado o último T. Sentou-se no chão.

A fila ficou maior. E dobrou a esquina. Ele olhou o relógio, ficou de pé. Batucou por algum tempo as pernas com as mãos, até que alguém lhe olhasse feio. Deu passos para um lado, para o outro e voltou a batucar as pernas. Chamou o fiscal, perguntou o que havia acontecido, esbravejou. Sentou de novo. Olhou o relógio, tirou o dinheiro do bolso, contou e suspirou. Fechou os olhos e quando abriu, as pessoas já subiam as escadas do T.

No caminho, cachoeiras se faziam pelas laterais do ônibus. A água não parava de cair e os bueiros entupidos jorravam seus esgotos. Descendo o morro, a maioria dos carros já havia parado, prestes a boiar. Lá pelas tantas, o motor do ônibus também cedeu. Ele pôs os dedos por entre os cabelos escorregando as mãos até a nuca. Ao descer, a água batia nos joelhos. Verificou o relógio de novo e saiu correndo. Correu fazendo a água subir ao rosto.

Passadas algumas ruas já bem escuras, a água estava mais baixa. Ele diminuiu o ritmo e perguntou a um menino a direção da Rua Alberta. Olhou mais uma vez o relógio e voltou a correr. Parou. Ofegante, pôs as mãos nos joelhos até que pudesse continuar. Então, caminhou. Passou casas, prédios, o morro. Deu mais uma corrida forte e parou em frente a uma casa grande, onde uma placa de madeira entalhada dizia: Casa de Teatro. Na frente, apenas um guarda encostado nos portões fechados.

Disse ao homem que tinha vindo para o teste. O guarda lamentou, o teste já havia encerrado. Ele elevou a voz ao pedir por favor. O guarda ordenou que não insistisse, dali há um ano haveria outro. Ele ficou parado um tempo, sem dizer nada. De repente, deu um murro no portão, fazendo os cães da vizinhança entrar em rebuliço. Tirou a mochila das costas e a atirou longe. Pegou uma pedra do chão, apertou, fez menção de jogá-la. Segurando ainda a pedra, foi embora. No caminho, faltou luz.

Descompasso

Por mais que ela pedisse, ele nunca fazia serenatas. Nem uma musiquinha ao pé do ouvido, nada. Depois do seu 89º aniversário, deu para romantismos. Todos os dias, acorda no meio da noite e começa a cantarolar canções de amor alemãs. Todas que sabe. E depois as repete. A noite inteira, sem parar.
Por mais que ela peça.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Destino

Diante do silêncio inquieto dos visitantes, ele filtra as primeiras impurezas. Transfere o que sobra para a segunda bateia, sacudindo-a em movimentos circulares. O restante, passa para a última bateia, sacode e verifica por alguns segundos. Nada. Joga o resto ao monte. Agachado entre as margens pardas do Rio Guinda, Demétrio repete o roçar das pedras nos fios metálicos das peneiras, esperando que a sorte venha para outro.

As terras são de poucos na região do Alto Jequitinhonha. Aos que não são herdeiros, resta empregar-se nas mais produtivas. Menino jeca, Demétrio chegou ao Garimpo Diamantina sem diferenciar vidro de diamante. Mas terminou lá a sua adolescência e, com vinte e quatro anos, já é considerado um dos melhores. Ganhou o respeito dos colegas, nada muito além disso.

Depois de mais uma demonstração, é a vez da moça sorteada no grupo, que espera, sorridente, batendo palminhas curtas, quase inaudíveis. Demétrio cede a ela a primeira peneirada, encarregando-se das últimas duas. Verifica, nada. É muito difícil que apareçam diamantes em uma chance única, mas os turistas pagam para ver. Depois de três séculos de exploração, o garimpo manual dá quase mais lucro como atração turística.

Terminado o dia, Demétrio chega à sua peça única de alvenaria, passando reto por Veridiana. Toma banho e senta-se à mesa já posta. Ela lhe pergunta como foi o dia, ele resmunga a resposta, e os dois continuam a comer em silêncio. Ele tem, como sempre, o olhar mirado na terra. Demétrio é de poucas palavras.
− Sai, que não te quero mais − ele diz.

O rio baixa e volta a subir, e Demétrio percebe que Veridiana não fazia mesmo diferença. Agora, atreve-se até a levantar os olhos, por alguns segundos, para ver mais do que os pés das visitantes. Faz questão de ceder a mão para que elas não caiam no rio. Demétrio tem marcas de sol ainda rasas e as sobrancelhas, que se unem entre os olhos, lhe dão um ar mais maduro e sério. Tem um nariz grande, alongado e o lábio inferior mais grosso que o superior. O corpo esguio quase não veste camisa. Mesmo que pouco se escute sua voz, ele não passa despercebido. As mulheres da região andam até mais arrumadas, e os homens, mais carrancudos.

Com a mão na direção do sol, o olhar fixo na pedra entre os dedos, Demétrio não percebe a aproximação de Regina, a filha mais nova de José, o centro-avante dos jogos de quinta-feira. Não é a primeira vez que a menina sardenta o observa. Ela desce até o rio, levanta a barra do vestido amarelo e senta-se à margem, colocando os pés na água. Demétrio olha para suas pernas, volta às bateias, pernas, bateias.
− Aqui não é lugar de mulher.
− Ah é? Onde é lugar, então?

Mesmo sem resposta, à noite ela aparece na peça única. E os dois iniciam uma série de encontros escondidos. Demétrio chega a acreditar que está apaixonado. Mas o romance dura só até José descobrir quem é o maldito que desvirginou a sua filha. Por sorte, Regina consegue fugir para o sítio de uma prima em terceiro grau. Agora, nas quintas-feiras, Demétrio joga canastra.

Onde há água, a poeira não demora a baixar. Mas Demétrio não deixa que ela se assente por muito tempo. Da última mesa do Bar do Gordo, depois de cinco doses de pinga, ele avista as sandálias de couro, as pernas morenas que terminam na saia curta, a blusa de renda branca, o decote: Estela. Estela do Adão, como a chamam − porque ela é mesmo uma das posses de Adão, guarda fiscalizador do garimpo. Demétrio levanta-se, vai até ela e, com todos os dedos, agarra-lhe o pulso. No susto, ela se vira. Sem uma palavra, ele a encara.
− Tá maluco? − diz ela, puxando o braço − o Adão te mataria só por encostar em mim.
Ele a solta, dá as costas e vai para casa a passos ríspidos. Ela olha para os lados, vai até o balcão, pede uma dose dupla, bebe num gole e segue os passos dele.

Ser o amante parece-lhe interessante, por algum tempo. O perigo, a aventura, as curvas de Estela. Mas o que poderia acabar com perda de emprego ou de vida, acaba com a perda da graça. Como as outras, ela não é grande coisa.

Demétrio passa a trabalhar além do horário. Encontra mais pedras em três meses do que os outros em um ano. Recebe todos os turistas e, de vez em quando, ainda que sem sorrir, até posa para foto. Compraz o patrão, que o agradece com tapinhas nas costas e um sábado de repouso por mês.

Numa dessas folgas, ele tira o dia para passear em Gouveia, cidade vizinha, que dizem ter um bom comércio de pedras decorativas. Perdido, aproxima-se hesitante de um grupo de moças que conversam em roda. Pergunta-lhes para que lado fica a Serra do Chapéu do Sol. Elas riem baixinho e uma delas responde, estendendo-lhe a mão:
− Ana Clara, muito prazer. Eu mostro pra você onde fica.
Caminhando por entre ruelas, ela lhe apresenta pessoas e lugares. Mas ele esquece de ouvi-la, desorientado entre seu vestido de chita e a alfazema que exala. Ela tem o pescoço longo e os cabelos castanhos mal presos a um passador. Franze o nariz ao sorrir e saltita quando aponta para uma coisa bonita. Seu caminhar não tem ruído.
− É você. Só pode ser você − ele a interrompe.
− O quê?
Ele sorri e a convida para passear algum dia pelo Caminho dos Diamantes, na Estrada Real.
Ela não demora a aceitar o convite. E tornar a aceitar. E por alguns meses, Demétrio só trabalha pensando nos domingos, quando eles se encontram e silenciam por entre as riquezas verdes que os portugueses deixaram para trás.
Ana Clara conhece o povoado, as pessoas e o Garimpo. Demétrio conhece o amor. E depois de ensaiar o pedido por semanas, leva-a até o coreto da praça. Antes que ele comece, ela abre um enorme sorriso e anuncia a notícia:
− Vou me casar com o Barão! Entra comigo na Igreja?

Demétrio a entrega em mãos. E segue a sua vida de garimpeiro.